sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

ano novo




Arrumar a casa.
Limpar a poeira acumulada, para que as cores sufocadas respirem em nova aparição. Cuidar dos suportes físicos, para que eles sejam a imagem externa da integridade do nosso espírito.
Lustrar os vidros, para que nesta transparência nosso pensamento se possa ver.
Reorganizar as distâncias entre as coisas, para que o espaço não seja um vazio, e para que a presença dos objetos não impeça o deambular de nossa percepção.
Praticar o desapego daquilo cujo tempo passou, para que a luz do dia toque de novo os olhos do nosso desejo.
Fazer tudo ao som da música, cantando junto, para que na mente também se opere a faxina.
Depois de tudo revitalizado, alegrar que sejamos nossa primeira visita.

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Entre um segundo e outro do dia, unindo-os para a cotidiana travessia, é aí que se vive o verdadeiro ano novo: em nossas mãos, enquanto avançamos, ao invés de champanhe ou fogos, a água, o pão e o sonho.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

paisagem deslimite






Limpar da tela ainda branca os clichês que previamente a ocupam e impedem que sobre ela nasça de fato algo novo, singular;curar a mente das ideias confusas que encurtam toda visão. Quando tal clínica acontece, o que há para pintar e ver não é um outro mundo, mas este mesmo: o único mundo, simples e múltiplo, como o pintou Vermeer.


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Espinosa polia lentes.Antes de tudo, tal atividade expressava um paciente esforço nascido de um desejo aplicado sobre si mesmo. O que Espinosa desejava ver mediante a lente?Ora, Espinosa sabia que o ver não é uma atividade meramente passiva, que se apaga no objeto visto. Ver é uma atividade produtora do visto: "ver vendo-se" aumenta a compreensão de si mesmo naquilo que se vê, ao mesmo tempo que torna claro o que se vê quando este não é mais impedido de ser alcançado por uma lente opaca e turva.A lente é o olho do espírito. Este é polido pela prática de uma vida sábia, livre. A mão atua nesse trabalho de ampliação daquilo que o espírito pode tocar. Polir a lente é a atividade de autoconhecimento, de firme aperfeiçoamento. Através do que ele via, Espinosa queria ver a si mesmo vendo-se e diferenciando-se daquilo que ele via e que dependia dele ver.Ao ver vendo-se, Espinosa se compreendia como o visto de um outro Ver que era imanente ao seu próprio ver, uma vez que nada existe fora desse Ver como atividade de uma Luz em relação a qual nada se furta.Polir o nosso ver é desejar ver brotar nele o Ver que integra todo visto à sua atividade.Diante de tal Ver, nosso ver é ,também ele, um visto, isto é, um objeto que aumenta sua potência quando pacientemente lustrado e polido. O ver não nasce no visto, mas no instrumento de ver . Espinosa compreendida que seu ver não nascia nele, em seu ego, em sua pessoa; ele sabia que seu ver era instrumento de um Ver que tinha em sua imanência tudo o que pode ser visto.A clareza do que se vê depende da natureza da lente. Esta não é um mero vidro passivo,transparente; a lente do espírito é o espírito mesmo em sua atividade de ver, conhecer e compreender.Todavia, o visto não é inato ao ver, uma vez que o visto é o ver mesmo produzindo e desdobrando-se, para dentro e para fora, aumentando pelo meio.Ao invés da visão contemplativa do místico, o ver produtivo do artesão.
Etimologicamente, “idéia” significa , aproximadamente,“objeto visto”. Para termos ideias é preciso que tenhamos abertos os olhos, os olhos do espírito. Ao objeto visto precede um ver como atividade de pensar. O pensar não é o visto, ele é o abrir os olhos para ver; o pensar não é a idéia, ele é o produzir idéias. Nessa produção do visto, a idéia se descobre como sendo o afeto mesmo, porém apreendido de uma outra perspectiva. Então, já não somos dois, mas um só: o que o espírito vê, o corpo sente; o que o espírito sente, o corpo vê.
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Estende-se a paisagem sem pedir à natureza um limite:
nunca a pode conter a humana moldura que em nosso olho existe.

pietá

Com as duas mãos para trás, andando lentamente, o homem de meia-idade só pensava em uma coisa: no próximo passo a dar, o qual ele dava de forma hesitante. De repente, passa correndo por ele uma criança, sem nada nos pés, sem nada nas mãos, sem nada no estômago. Correndo atrás dela, o policial, o assistente social, o padre, o psicólogo, as balas de revólver. Dentro do homem escondeu-se aquela criança, entrando-lhe pela porta da sensibilidade apenas entreaberta: a criança se apossa , desfaz o laço e o nó das mãos às costas, e delas cai o passado que o homem segurava como uma pedra.

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Maria não falava sozinha. Ela falava com ela mesma, no interior de sua alma. Acontece que sua alma se estendia cerca de 30 centímetros além de sua pele , como se fosse uma aura. Maria descobriu que tinha esta alma externa quando ainda era uma menina, e como menina brincava a sério de ter uma alma que não cabia totalmente nela.Ela nunca mais parou de brincar assim, sem perceber que cresceu. Parte da alma de Maria estava fora dela. Esta parte da alma tomava chuva, sol e vento; não aquele vento que Deus soprou como espírito, apenas vento mesmo; não raro, tal vento se impregnava com os restos de comida que Maria cata por aí. Maria carregava uma mala que nunca abria, como também não estava aberta, apesar das aparências, esta alma fora dela. Apesar de não estar aberta, atravessavam-lhe os gritos, as sirenes, os pedidos de socorro, as fumaças de tudo quanto é incêndio e os fragmentos de todos os seres que um dia formaram um todo. Maria carregava a mala como se estivesse para ir ou para voltar: e no intervalo entre estes dois atos que ela de fato nunca fazia, neste intervalo todo lugar se tornava o estrangeiro onde ela não podia morar. Embora a alma externa não fosse inteira, metade dela era imaginação, metade desejo: a idéia que em uma parte morria, na outra ressuscitava pelo avesso. Como se fosse um espelho cujo aço se apagou, essa alma-fora não deixava Maria ver-se nela.Muitas vezes, era a partir desta alma-fora que Maria falava, sem ninguém ouvir ou entender. Esta voz que do fora nascia, por vezes entrava por dentro da boca de Maria, como se fosse uma prece ao contrário. Prestando atenção até onde essa voz ia, parecia que Maria ficava em silêncio. Mas a voz ia até onde não a podia mais escutar Maria; e tampouco o pode a Psiquiatria, a Psicologia, a Filosofia, a Teologia e tudo aquilo que o homem inventou para falar a si. Talvez escute essa voz de Maria apenas os ouvidos da Arte: talvez quando vier a resposta, se vier, já seja tarde.