sexta-feira, 30 de maio de 2008



O UTILITARISMO


A lua se foi.
Se volta, não disse a ninguém...
Desde então, choram as crianças por terem nascido;
enquanto os poetas, para escreverem,
não encontram motivo:
sofre o amor, cada vez menos vivo.

Dizem que a lua se foi magoada.
A magoou a humana empreitada
que , após pôr os pés sobre ela,
nela afixou a placa:
“Vende-se essa pedra que não serve para nada”.




quarta-feira, 28 de maio de 2008



O TERREMOTO



Por onde andava, não posso mais andar.
O que eu via se desfez.
A estrada reta fez-se curva:
e sinuosa, serpenteando, se quebrou.
O sólido fez-se pó a sumir.
A fruta não caiu, voou daqui.

Meus pés dançaram e não havia música.
Meu coração disparou sem eu estar a correr.
O horizonte mais parecia um muro a cair,
enquanto tudo a fugir soltava sua raiz do chão:
as rezas não eram mais ouvidas,
pois o próprio Deus tapou os ouvidos,
para não ouvir a terra rugir feito um leão.

Mas em meio a tanta desolação,
quando menos se esperava,
o inimigo me estendeu a mão,
e como irmão me ajudou a reconstruir
a casa.




terça-feira, 27 de maio de 2008




FIM DA INSÔNIA

A luz do quarto estava apagada,
mas não a da preocupada alma:
de um lado para o outro na cama eu rolava,
enquanto as horas pingavam da torneira do tempo.

De repente,
como se viesse por si própria,
e não porque eu a evocasse,
a vida vivida retornava:
o passado vinha dar sentido ao meu presente.

Abertas as portas da memória,
dela primeiro saiu pepita,
tal como era:
a pequena cadela ,
preta e amarela,
deitou-se aos meus pés
e me acalmou.

Depois, veio minha avó:
trazia um prato com feijão
que só ela sabia fazer para me curar.

Vieram as ruas de minha infância,
os campos de pelada,
e até mesmo a extinta chuva ressuscitou
para de novo sob ela eu brincar.

Novamente, vi Rosinha na janela...
Queria confessar-me a ela,
mas passei fingindo que não a via:
quando me virei, ela para mim sorria.

Por fim, duas mãos suaves se puseram
sobre meus olhos.
E com os olhos do preocupado adulto
assim fechados,
quando por fim as mãos do sono se retiraram,
foram os olhos do sonho que enfim abri.









O QUE DIZEM OS FILÓSOFOS
( e que não está nos livros)


Kant dizia que o sangue, antes de passar pelo coração,
vem carregado de impurezas que somente a amizade pode filtrar.

Platão acreditava que é somente quando a alma se procura no espelho do céu, e neste se reflete, que ela se pode ver mais bonita.

Aristóteles ensinava que no amor os braços se movem à semelhança de asas,
o que comprovaria a tese de que um dia o homem voou.

Espinosa dizia que somente o artista, quando ao novo cria, compreende o desejo de Deus.

Pascal professava que quem não sabe rir de si mesmo jamais entrará nos templos do céu.

Nietzsche escreveu com o dedo, nas areias da praia , a única verdade em que acreditou:
soube o mar , antes de todos, a tal verdade ( e, lambendo-a, para si mesmo a guardou).

Heráclito dizia que só devemos crer nas crianças.
E aprender com elas que a brincadeira está não só no criar,
mas também no destruir,
desde que no coração somente haja inocência.






O galo canta porque ele pressente,
ainda em meio à noite,
a manhã chegando.

Não seria essa a essência de todo cantar:
anunciar , na manhã que vem,
todas as manhãs que ainda vão chegar?

Sempre haverá uma manhã por vir,
por mais longa que seja a noite.
Disso sabe quem canta.






AS ESTRELAS E OS VAGA-LUMES


Quando nadam sob as águas,
tendo acima uma noite estrelada,
por vezes os peixes olham para cima .

Refletidos na tona d’água,
tremeluzem os distantes astros,
atraindo a atenção dos peixes que os observam.

Pensando se tratarem de vaga-lumes,
pois assim lhes cegou o costume,
os peixes sobem para abocanhar fantasmas.

Cego assim também é o homem,
quando reduz o mistério infinito
à humana medida nascida no avesso do seu olho.



segunda-feira, 26 de maio de 2008





Abriu-se a janela.
Mas antes da janela,
estava aberta a porta.
Antes da porta,
estavam abertas as mãos.
Antes das mãos,
estavam abertos os olhos.
Antes dos olhos,
estava aberto o coração.
E através dele,
mansamente,
um pardal em mim entrou:
colheu as sementes do meu sonho,
e para suas crias,
no ninho,
retornou.

o concurso público





CONCURSO PÚBLICO PARA DECÊNCIA SUPERIOR

Estou prestando concurso público para pombo.
Acho que tenho sérias chances de aprovação,
pois a banca é composta apenas por anjos,
e sempre tive queda para voar, 
mesmo com os pés no chão.

A prova teórica consiste em:
dissertar assoviando acerca dos limites da razão.
A prova prática consiste em:
ir buscar no céu o que sinceramente quer meu coração.


O ESTÓICO

Marco Aurélio,
do alto do seu Império,
certa vez desviou um exército inteiro
para não pisar em uma formiga.

Ele bebia com seus escravos
e com estes aprendeu a rir.
E um menininho mestiço,
sempre por ele aos cuidados,
por diversas vezes era visto com seu cajado
― e de ser Rei , com o Rei, brincava.

Marco Aurélio escrevia à noite;
e ,de manhã ,seus olhos vermelhos
freqüentemente denunciavam que o Rei não dormira.

No meio de uma batalha,
por vezes acompanhava, com os olhos,
pássaros a voar para longe.
Imediatamente largava então a espada
e corria à tenda para anotar uma reflexão.

Dizia que seu maior escudo era o coração
e que enquanto permanecesse atrás dele
nenhuma batalha estaria perdida.

Ouvia como um amigo;
falava como um simples;
agia como um sábio;
e escrevia como quem sara uma ferida.